6.24.2009

Leite Derramado


Na semana passada, falávamos de memórias. Dessas que surgem sem mesmo desejarmos e das que tentamos, tentamos e nada! Fingem desaparecer. E é tentando lembrar o foco tratado anteriormente, que também de memórias trataremos nesta resenha. Mas agora outras memórias. Dessas que são íntimas e que, no entanto, gostaríamos de transmitir a outros. Memórias que não veem em ordem cronológica e sequer representam a verdade dos fatos. Simplesmente memórias de alguém que viveu um bocado de tempo e sente que o seu papel estará cumprido depois que fizer este último “serviço”.
Há quem diga que todos devem ter a experiência de escrever um livro e alguns o fazem mediante experiência profissional; outros, mais audaciosos, escrevem memórias tal como a que falávamos acima. Memórias que Chico Buarque de Hollanda recria tão bem em “Leite Derramado”, recente livro lançado pelo poeta e escritor.
No livro, temos memórias que às vezes se repetem, levando a crer na demência do relator. Porém, a fim de evitar que esta injúria aconteça, ele logo se defende e diz: “não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida”. É, talvez senil não seja, realmente, a palavra adequada para descrever alguém que menciona isto. Nada mais certo e verdadeiro que a repetição de histórias em nossas vidas.
Os dias passam de tal maneira que tudo parece se repetir, sempre. Acaba virando monotonia e, de certo para que não caíssemos no derradeiro fim da repetição, inventaram as novidades, também chamadas surpresas. Estas geralmente acontecem de maneira mais escandalosa na vida afetiva dos indivíduos. Se passa assim: você leva a vida fazendo as coisas tal como julga ser o adequado; passa um ano, dois, três ou simplesmente alguns dias e meses, não importa. O tempo passou e a cada instante em que você percebe que “está tudo na mesma” bate aquele aperto e uma sensação desgraçada de não sentir mais “tesão” nas atividades rotineiras. Até o momento em que, para provar que nem tudo está perdido, você é acometido por um inesperado acontecimento. Algo que te tira da mesmice, te faz rir e pensar em voz alta: “poxa, e não é que isso aconteceu”!.
Pois é, mas não se anime muito não, logo surge algo que te leva de volta à realidade. Isso porque, mesmices só são alteradas por acontecimentos que levam a gente sorrir um sorriso mais verdadeiro, e que logo se vão embora, porque, do contrário, perderiam a graça. Assim elas somem, ficam na memória e um dia ou outro lembramos delas. E, daí, talvez até tentemos colocá-las no papel a fim de montar uma narrativa de algo que julguemos importante. Talvez elas desapareçam como um todo ou não. E isso ninguém, a não ser o tempo, poderá dizer. Somente ele possibilita a existência de memórias nem que seja para esquecermos da realidade. Esquecer que se passaram anos e a Matilde não voltou, como no livro. Às vezes acontece: as pessoas vão embora e não voltam mais. Ficam apenas no espaço a elas reservado em parte de nossa história que, quiçá um dia, seja tratada como a de Eulálio d’Assumpção.


Boa leitura!

6.23.2009

Os funerais de mamãe grande


Quem já não tentou lembrar de algo extremamente importante, sem sucesso, mas que, sem querer, manteve na ponta da língua uma música que sequer suportava? É... coisas dessa máquina humana que ainda carecem de maiores explicações cabíveis ao senso comum. Afinal, todos temos memória, isso é certo! Uns, mais aguçada (a chamada de “elefante”), outros mais relapsa, mas todos a temos sobre inúmeras coisas e fatos absorvidos diariamente. Essa memória por vezes parece encher-se e, cheios mesmo, nos sentimos quando ansiamos por falar de algo e este escapa como se nunca o tivéssemos conhecido. Isso acontece porque nossa memória se retroalimenta; não consegue manter tudo a postos a qualquer chamado do cérebro; assim, as informações recebidas ficam armazenadas em uma parte de nossa mente à espera de que sejam utilizadas, mesmo que pareçam esquecidas. Todo esse processo se deflagra graças à imensidade de informações recebidas.
Entretanto, mais do que lembrar ou esquecer de datas, convites, nomes de livro, músicas, senhas e afins, a palavra memória tem um caráter de significar algo de importância (para alguém ou de alguma coisa). E, humanos que somos, nos apropriamos de uma vaidade que nos leva a pensar em sermos (em algum momento) lembrados e que estamos presentes na memória viva de outra pessoa sendo, assim, “importantes”. Nem sequer colocamos o assunto muito à prova: apenas imaginamos que somos “lembrados” e pronto, ego alimentado! No entanto, quando acometidos por um acesso de modéstia, nos percebemos recebendo alguma crítica (ou qualquer coisa do gênero) sobre algo que sequer lembrávamos de ter feito, bom, aí é, como dizem, “mara”! Porém, muitas vezes essa lembrança vem, apenas, acompanhada do silêncio imposto pela morte e aí nada de vaidades ao defunto. Até porque, nem um “muito obrigada” este poderá lhe oferecer. Mesmo assim, como se esquecêssemos deste pequeno detalhe intermitente da morte, criamos (fortalecemos) o hábito de lembrar e honrar certas pessoas apenas quando elas “se foram”; quando não fazem mais parte do mundo da matéria e ficam somente na lembrança, disputando um espaço melhor intencionado em nossas cabeças. É dessa memória que nos fala Gabriel García Márquez, em “Os funerais de Mamãe Grande”.
Em uma história de lutas, como foi a antiga Macondo, com heróis falidos, calor escaldante, a sombra das amendoeiras, as crendices, hábitos e lendas, característicos intrínsecos à cultura de países da América Latina, o autor colombiano nos leva até o povoado em que se passa a narrativa e nos coloca de frente à Mamãe Grande. São oito crônicas reunidas e no centro delas um funeral. Não qualquer funeral, mas sim destes de, realmente, ficar na memória; com a presença de autoridades políticas, pontífices e os mais altos escalões que um universo criado por Márquez é capaz de compor.
Mamãe Grande ansiava por viver até os cem anos, não pode. E não poderia, também, ter imaginado tamanha aclamação ao seu desgastado corpo embalsamado que, por mais de 48 horas, recebia congratulações e palavras de conforto (coisas das quais são comuns em momentos como este). Ao se despedir de Mamãe Grande, Macondo se despedia (aliviada?), também de uma parte de sua história que, a partir daquele corpo estendido, passava a ficar no passado e que, talvez, até fosse esquecido, mas estabelecia algo como uma linha do tempo sob os olhos atentos dos urubus.


Boa leitura!

6.11.2009

1968: o ano que não terminou


Bons tempos eram aqueles do colégio; o intervalo; as amizades; o barulho ensurdecedor dos gritos, falas, risos; tudo guardado num passado que, “poxa vida!, Era bom e não sabíamos o quanto”. Nesse mesmo colégio, a estrutura “não era lá essas coisas” e, então, alguns professores eram adaptados à disciplina que estava em maior carência e aí o mesmo que trabalhava “ensino religioso”, dava “artes” e “educação física”. Na época, isso era até engraçado (muito pela falta de destreza do educador para tanta diversidade), mas hoje, todas essas lembranças, além de nostalgia, nos fazem pensar que perdemos algo que faz sim, muita falta. Um exemplo são as aulas de história: víamos o comunismo, o socialismo, a divisão política do mundo, Era Vargas, Diretas Já e por aí vai. Aprendíamos esse conteúdo como parte de uma história distante, quase incompatível com a atual realidade. Os anos passam e, de repente, você, de livre e espontânea vontade, opta por uma leitura de fim de semana e adivinhem: escolhe um livro como o de Zuenir Ventura, “1968: o ano que não terminou”.
Nele vemos falar de jovens rebeldes, admiradores de Marx, Che Guevara, desses barbudos e cabeludos, destemidos, pouco preocupados com qualquer vestígio fútil de estética; jovens que se juntavam para (pensem só!) discutir política. Esses mesmos jovens tinham ideais em comum: lutar contra a injustiça, melhores qualidades de ensino, liberdade de expressão (e aqui não cabem clichês) e liberdade para produção artística; jovens “com a história na mão, aprendendo e ensinando uma nova lição”, tal como disse Geraldo Vandré na canção que virou hino de um período (Pra não dizer que não falei de flores). Jovens que, como conta Zuenir, quando questionados sobre sua “admirável tática de guerrilha urbana” respondiam: “tudo o que nós sabemos, aprendemos com a polícia”.
A obra apresenta entrevistas, depoimentos e recortes de textos publicados em jornais, revistas, livros e documentos referentes ao funesto ano de 1968. Porém, mais do que isso, faz um retrospecto na trajetória política de um país hoje visto como calmo e pacato. Desde a festa de reveillon na casa de Heloísa Buarque de Holanda à efetivação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) conhecemos um outro Brasil. De maneira exemplar, o jornalista narra todos os acontecimentos desse importante ano na vida política do país. “Debaixo de uma apagada e vil tristeza, o ano chegava ao fim – o ano, o capítulo o livro. Os dois últimos por falta de autor –, também ele, como todo mundo, levado pelo arrastão”. Assim termina o livro de um ano sem fim na memória de muitos brasileiros. Um ano que emociona e revolta. Nos faz pensar que a história talvez pudesse ter sido diferente se, quem sabe, tivéssemos visto a luta desses jovens, artistas, autônomos, estudantes, jornalistas, advogados; se tivéssemos ouvido os gritos e gemidos impostos pela tortura; se pudéssemos ter imaginado o quão sofreram aqueles que quiseram lutar pelo tal progresso inscrito na bandeira nacional; talvez, se tivéssemos tido a sensibilidade (oportunidade?) de conhecer pessoas como Vladimir Pereira pudéssemos entender o que esse país tem; saber qual a sua doença, porque covardia não é. Dessa, só aqueles que impuseram a miséria e a ditadura sabem falar. Hoje, como uma das tantas ex-alunas de escola pública, percebo que era deles que devíamos ter ouvido falar; era eles que deveríamos ter contracenado nos desfiles de 7 de Setembro; deles deveríamos nos orgulhar, pois se ainda existe algum sentimento de esperança é pela luta que eles travaram contra o maior de todos os inimigos: o egoísmo. Talvez aí, saberíamos na ponta da língua o que é esse tal de PIG*.

* PIG - Partido da Imprensa Golpista, nas palavras de Paulo Henrique Amorim.
Boa Leitura!

6.01.2009

Estranhos no Paraíso


O fato de conhecermos algumas coisas não nos dá autoridade para que dela falemos sem medo de errar. Esses “equívocos” podem acontecer em textos (como este), em falas e, claro, em “fatos da vida real”. Aliás, é nessa que geralmente mais tropeçamos naquilo que “poxa vida, eu jurava que ia dar certo”.
Pois é... nem sempre esse “certo” acontece e aí, o que fazer? “Nada!”, talvez seja a melhor resposta; ou “Tudo!”, dependendo de a quantos volts você está ligado. É, talvez esse texto seja a prova viva de que o erro acontece (principalmente para aqueles que falam dele). Mas, ainda assim me arrisco. Por dois motivos: primeiro porque falando em relações humanas todos podemos errar/acertar ou os dois juntos. Em relacionamentos tudo pode acontecer, inclusive quando ninguém poderia imaginar. E segundo, não menos importante, porque fui induzida a tal, através do livro “Estranhos no Paraíso”, de Olsen Jr.
Na obra, o escritor catarinense fala sobre a vida de uma família: pai, mãe, filho e filha. Cada um deles com a sua percepção sobre a realidade que todos desfrutam: o pai, que desistiu de alguns sonhos por perceber que a utopia não o tinha levado a lugar algum; a mãe por se imaginar louca e, então, louca ficar; a filha por tentar fazer de conta que apenas uma viagem seria capaz de fazê-la esquecer de tudo o que não vive; e o filho, músico, que sofre de uma doença ainda desconhecida na década de 60. É assim, depois de um dia de relatos e confissões, que conhecemos estes quatro brasileiros que se percebem estranhos num paraíso por eles mesmo criado.
Mas, antes que se possa pensar que o livro traz apenas um diário de uma família infeliz, é preciso dizer que, além disso, o autor nos fala de contestação. A contestação vista (ou sentida, como achar melhor) de diferentes ângulos e, principalmente, o que é feito dela. Aproveitando o período político pela qual o país passa na época, os desejos, aflições, sonhos e lutas, o autor comenta sobre essa contestação tão banal que é dizer “não”. Não apenas por dizer, mas por sentir, por querer, por viver. E, mais incrível ainda, dizer “não” para, no fundo, dizer um “sim” ainda mais fervoroso pelo que se conquistou do “não”.
É destes estranhos de que fala Olsen Jr. Desses que dizem não pra ter um sim. E que, por mais absurdo que possa parecer, muitas vezes sofrem e esbravejam em sua forma de luta. Aqueles que não concordam com tudo; que não aceitam, simplesmente; aqueles que dizem o “não” a alguma coisa para que isso possa representar um “sim” para outra. Quase que brincando com as palavras, compreendemos como isso nos diz coisas importantes; dessas que nem sempre percebemos e que, às vezes, sequer nos damos conta. Dessas que costumamos a dizer sim, por ser mais rápido, cômodo e prático, sem ao menos arriscar um não. Um não como esse que me fez acreditar ser possível escrever sobre sim e não, mesmo morrendo de medo de errar e (aff!) perceber que sempre falamos e nunca dizemos nada.

Boa leitura!

Que farei com este livro?



O ser humano é feito de sensações. Sentimo-las das mais variadas formas e em diferentes intensidades. O fato é que elas sempre estão ali: junto daquilo que fazemos. Se vamos ao mercado, sentimos a sensação de “realização” (afinal, trabalhamos para desfrutar dessa compra); se estamos com a namorada, sentimos que ali nada está totalmente completo e definido; sentimos também a sensação de vazio que vai se preenchendo ao passo que viramos a página de um livro, enfim, milhares de outras sensações poderiam ser aqui citadas, não fosse a sensação de falta de memória de quem escreve.
Não obstante, falemos exclusivamente daquelas sentidas quando desempenhamos algum serviço ou algo que se queira há bastante tempo. Assim, que terminamos, sentimos um misto dessas sensações (subjetivas em qualquer descrição) e, então, a concepção do que ela possa significar fica mais difusa. Para alguns, mais do que um trabalho, o ato de fazer algo que tenha a ver com o desempenho profissional diz respeito à realização e daí surgem sensações de “dever cumprido” e aquele gostinho de não ver a hora em fazer de novo para se satisfazer; mas, há também, os que, simplesmente, não sabem o que fazer com o resultado em mãos.
Assim acontece com Luiz Vaz de Camões, quando vê impresso seu livro “Os Lusíadas”, em 1572. A história da “impressão” dessa obra (e mais duas peças) é narrada por José Saramago e pode ser acompanha em “Que farei com este livro?”, pergunta que também se faz Luiz Vaz de Camões ao tocar em seu trabalho finalizado.
Por todo o reino de Portugal ele, Camões, era conhecido e assim foi para cada um dos que liam os textos que desenvolvia. Camões, após retornar das Índias, onde passou dezessete anos, negociou com a Inquisição e com a corte portuguesa a permissão para publicar a obra que viria a ser considerada a maior de toda a língua portuguesa. Mas, assim como hoje, fazer um trabalho e as outras pessoas reconhecerem nele um esforço é totalmente diferente de receber apoio ou mesmo incentivo para que ele, realmente, aconteça. Assim foi com o português e assim é com tantos outros Luizes que lutam diariamente para fazer de seu trabalho espaço de satisfação e encontro de sensações.
O fato narrado por Saramago aconteceu há mais de quinhentos anos e, mesmo assim, é como se ao virar as páginas encontrássemos ali mais um Pedro ou João que esbravejam seus sonhos aos quatro ventos; desses que fazem de desejos a realidade; que apesar de manter os pés no chão conseguem mais do que apenas repetir funções e deveres; pessoas que muitos não conseguem compreender e que ainda julgam como loucos, utópicos e (acreditem) enfadonhos. Pessoas como Torres, da segunda peça apresentada no livro (A noite): um jornalista que vê a redação em que trabalha se transformar numa verdadeira maquete da “grande” Portugal em plena Revolução dos Cravos (1974). Desses dois sujeitos nos restam a vontade de tocar em algo que seja, ao mesmo tempo, verdadeiro e sensível; que seja real como as pessoas que compõem as peças de Saramago. Nem que seja para que ao final apenas nos perguntemos o que faremos com este livro. Porque talvez a resposta seja curta e mais prática que o imaginado: repassamos e indicamos a outros que também queiram apreciar mais uma boa narrativa do escritor português e sentir aquelas sensações de que falávamos no início.

Boa leitura!