Há dias em que o mais irredutível dos homens pode render-se a um encantamento. Esquece-se, ele, do sofrimento, da falta de oportunidades e do preconceito que sofre. Um dia me disse um amigo: “Viver na diferença é ir contra a maré todos os dias. A cada amanhecer é um novo embate”. Meu amigo, na condição de diferente por ser homossexual, teve muitas portas fechadas, no entanto precisou encontrar novas janelas, buracos, qualquer forma para que visse a claridade do sol. “Não é fácil”, reforça ele.
O preconceito de que sofre este amigo é semelhante ao de muitas outras pessoas que, por algum motivo, são colocadas como “diferentes” e, por isso, taxadas com as mais inadmissíveis barbaridades. São pessoas como os “Capitães da Areia”, grupo de meninos que “infestavam” Bahia de 1937 e que tem no cais o seu quartel general.
A obra de Jorge Amado narra a história de meninos que vivem nas ruas, sem família, casa ou qualquer conforto. Meninos que, pela necessidade, descobriram o valor da amizade e da parceria. Com o grupo, organizavam furtos e destes tiravam o sustento e algum prazer.
A narrativa se desenrola no Trapiche (hoje Solar do Unhão e o Museu de Arte Moderna); no Terreiro de Jesus (na época era lugar de destaque comercial de Salvador); onde os meninos conseguiam dinheiro e comida devido ao grande movimento de pessoas; e no Corredor da Vitória, área nobre de Salvador, também conhecida como “cidade alta”.
Mas não é apenas destes meninos que vemos falar na história contada por Jorge Amado. Ali conhecemos crianças. Destas que nunca brincaram num carrossel, que desconhecem o sentido da palavra carinho, que não fazem planos para o futuro. Ao se deitar, os Capitães da Areia não sonham; apenas sofrem com antigas lembranças das surras, esporos e covardia de que eram vítimas ao serem conduzidas ao reformatório.
Ao ler essa história é simplesmente impossível não sentir medo e angústia. É impossível não ter esperança de que, como nos filmes, no fim tudo pode dar certo. Jorge Amado é mais realista. Tanto, que ainda hoje a sua história não precisa muito para ter exemplos cotidianos.
Os “Capitães” às vezes cansavam da liberdade da rua; queriam mais. Procuravam carinho, atenção, “qualquer coisa fora daquela vida”. No entanto, poucos percebiam que, “vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas”. Poetas que morreram de fome, de “bexiga” e, até, de saudade do que não tinham.
Boa leitura e até a próxima semana!
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