10.26.2010

O gerente

Passeava pela livraria e buscava entre os autores já conhecidos algum título que, no momento, despertasse a minha atenção. Na segunda olhadela desisti e optei por este livro que vos segue: “O gerente”, de Carlos Drumond de Andrade. Com a primeira versão publicada ainda em 1945, com ilustrações de J. Moraes, “O gerente” de agora vem revisado, de acordo com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, e apresenta ilustrações do argentino Alfredo Benavidez Bedoya.
Trata-se de um conto. O conto que traz um Rio de Janeiro modesto, tranquilo e seguro. É nesta cidade que conhecemos Samuel, o gerente em questão, que a exemplo de muitos outros brasileiros conquista seu espaço profissional com trabalho sério e dedicado.
Um homem que tinha tudo para ser um bom marido, mas que se descobre incapaz de tal ato. Reclusa-se a viver sozinho, numa rotina de galanteios, coquetéis, jantares, bailes e comemorações. Samuel revela-se uma figura amorosa, respeitável e coerente. No entanto, como coerência não garante estabilidade, casos estranhos passam a acontecer e, de repente, este mesmo homem passa a ser julgado pelo crime das dentadas. Um tanto antropofágico, o conto revela um caso de pequeno mistério. Nem raiva, nem rancor, nem desprezo. Apenas mistério, incredulidade e alguma desconfiança. Seria, Samuel, capaz de tal audácia? Para que tamanha ousadia?
Nem o conto, nem Samuel, nem Carlos Drumond de Andrade respondem tais perguntas. E talvez seja esta uma das intenções da obra: deixar a bola picando. É o pensamento que ora é isso, ora é aquilo; os devaneios; a ideia que não chega a ter um fim e se perde no meio de outra que surge; é o conto; a literatura; o hábito de não por um ponto final em tudo. É a vida sob outra perspectiva: sem exatidões, respostas ou resultado final. É a vida inconstante, surpreendente e inquietante. É o Samuel, é você é cada um ao mesmo tempo fazendo tudo diferente.
E sobre o causo, ficou assim. Samuel partir para São Paulo. Fazia muito calor no Rio e o gim já não bastava mais. Mas as dentadas...

Boa leitura!

Esquisita como Eu

Sabe aquele dia em que você acorda e tudo parece meio devagar? O telefone não toca, o e-mail não chega, nem sol, nem chuva, nem nada. Nada além do que já estamos acostumados a receber e esperar. Dias assim têm mais características em comum: demoram para passar, geralmente caem na segunda-feira e, a melhor de todas, parecem não acontecer com os outros.
Essa última, suponho, acontece porque insistimos em pensar que tudo (quando é ruim) só acontece conosco. Dessa forma supomos que os outros (felizes e sorridentes) nunca tenham tido tamanha experiência.
É assim quando olhamos para nós... e quando olhamos para os outros: sempre traçamos comparações. E, comparando esta obra (“Esquisita como Eu”) com as demais da autora (Martha Medeiros) impossível não sentir a diferença.
Em sua estreia na literatura infantil, a cronista gaúcha lança palavras que, de letra em letra, se constituem numa breve explanação sobre um pouco disso que falávamos: ser igual, ser diferente. Marta apresenta as esquisitices de sua personagem e ao falar dela, fala das esquisitices de todos os outros também, ora por serem iguais, ora por serem diferentes. Ou um, ou outro. Talvez nenhum ou todos.
Ilustrado por Laura Castilhos, o livro apresenta o colorido, o inexato e o inesperado de cada sujeito frente a esquisitice dos outros, sejam eles crianças, adultos ou adultos que desejam ser para sempre pequenos (ou pequenos que quando crescerem querem pensar menos, ter problemas pequenos, apenas com tempo para seu gato e cachorro). A parte isso, as comparações servem apenas para evidenciar algo que já estamos fartos de saber: que somos diferentes e que pela diferença vivemos. Do contrário, seria uma baita monotonia. Certa está a personagem de Martha Medeiros em ver suas próprias esquisitices frente a “igualdade” dos outros. O exercício mostra que assim parecemos mais autênticos, como as crianças.

Boa leitura!

A doce revolucionária!

Quando se trabalha com arte, música, literatura e suas diversas possibilidades de produção de conteúdo, a citação “nasceu mais um filho” é comumente utilizada. Isso porque a cada resultado de trabalho, a cada exposição, a cada disco gravado, livro publicado, música composta, entre outros, é empregada muita energia, mas muita mesmo. Noites em claro, viagens adiadas, lazer protelado, tudo por um “gran finale”.
É com a expressão de quem tem o dever cumprido que Torres Pereira chega à redação onde trabalho e me entrega o seu mais recente “filho”. Um filho querido.
Um filho que, justamente, se espelha em uma criança para apresentar a sua ideia; que vê na pequena Naiê um bom exemplo de boas ações e atitudes; e que, principalmente, crê num futuro melhor.
O livro apresentado pelo escritor português se chama “A doce revolucionária” e se passa no interior de uma escola. Neste ambiente conhecemos a adolescente (já apresentada como Naiê) que dá luz à história. E, como não poderia ser diferente, a protagonista o é por desempenhar um papel de destaque nos episódios que constroem a narrativa. Naiê o consegue porque resolve não ficar de braços cruzados frente a questões simples, que fazem da vida mais tranquila e que competem a qualquer cidadão.
Um exemplo? Cuidar para que não se jogue lixo pelo chão. Pode parecer repetitivo, taxativo e, até, “conversa para boi dormir”. Mas Naiê não pensa assim e resolve lutar por ambientes onde cada pessoa jogue o seu lixo no devido lugar.
Esta é apenas uma dentre as tantas situações apresentadas na obra de Torres. Questões que vão além do simples ato de saber “aonde jogar o lixo”, mas que falam sobre educação, respeito, noção de cidadania e humanismo. Coisas que fazem falta a qualquer um durante toda a vida, não importa se adulto, criança ou adolescente. Coisas que, muitas vezes, só as crianças são capazes de perceber (e fazer) e das quais não viveríamos sem.

Boa leitura e até a próxima semana!

O menino no espelho

Já escrevi neste espaço o quão agradável é a surpresa de pegar um livro (com ou sem referências) e com ele passar algumas boas horas. Não há palavra que resuma a sensação de se perceber sorrindo sozinho com alguma façanha de determinado personagem, chorando com a realidade de outros ou mesmo voltando ao passado para relembrar um momento por nós vivido e que é mencionado na obra. A proeza que conseguem os escritores quando chegam a este ponto deve, portanto, ser reverenciada. Então, nesta semana, o “salve” vai para Fernando Sabino e “O menino no espelho”.
O livro que é, em boa parte, a história do próprio autor, aliada à narrativa das peripécias vividas por Fernando (o menino protagonista), conduzem a boas risadas. Pelo menos a mim o efeito foi esse. Não resisti quando Fernando ao chegar em casa se deparou com uma galinha no quintal, deu a ela o nome de Fernanda, ensinou-a a falar e, depois, passou a pensar num plano infalível para evitar que ela se transformasse no cardápio de sábado (frango ao molho pardo). Fernando precisou contar com a sorte e a astúcia que só as crianças têm e, claro, com o “jogo de cintura” da galinha, digo, da Fernanda. Também não resisti quando Fernando (também chamado de agente Odnanref), a agente Anairam, o agente Pastoff e o agente Hindemburgo (totalizando: um casal de brasileiros, um russo e um alemão), formavam o Departamento Especial de Investigações e Espionagem Olho de Gato e através dela descobriam tramas horripilantes com muita coragem e perspicácia.
Seja na espionagem, na educação da galinha, desculpem, Fernanda, quanto no dia que Fernando voou, Fernando Sabino deixa rastros de uma boa memória e uma ótima imaginação. Impossível, também, não protelar o término do livro. Eu, confesso, adiei o que pude. Até o meu prazo de “trabalho” estourar. Mas, chega um momento que não adianta, você cresce, já não cultiva sociedades secretas, não brinca mais na chuva, nem vê o reflexo saindo do espelho para tomar aquele remédio com gosto horrível. Chega uma hora em que é preciso dizer apenas que o livro é muito bom e que nada supera a infância. Como disse, muito bem, o autor: “quando eu era menino, os mais velhos perguntavam: - O que você vai ser quando crescer? Hoje não me perguntam mais. Se perguntasse, eu diria que quero ser menino”. Essa é a ideia de todo o livro: simples como são as crianças! E por isso mesmo, encantadora!


Boa leitura e até a próxima semana!

9.09.2010

Saramago, biografia!


Antes de qualquer palavra é preciso que eu peça desculpas, pois de maneira alguma conseguirei, nesta coluna, dar conta do papel a que me propus já faz algum tempo: resenhar sobre um livro. Impossível porque escolho, de maneira egoísta, uma obra da qual retiro imensa satisfação e que trata de um dos melhores autores de todos os tempos.
A biografia de José Saramago, escrita por João Marques Lopes, me chamou a atenção, em primeiro, pela capa. Nela, um homem velho segura seus óculos e escora, pensativo, o queixo em uma das mãos. Um homem que nasceu numa época de guerra, miséria e analfabetismo. O homem da capa carrega um olhar triste e, talvez, cansado. Um olhar de Saramago.
Criador de um estilo único de linguagem (o saramaguiano), autor de livros célebres, prêmio Nobel em 1998, comunista e inconformado desde sempre, José Saramago desafiou seu destino e, como diz o dito popular, “mostrou a que veio”. E como mostrou.
Sua primeira obra, de 1947, chama-se Terra do pecado e rendeu pouquíssimas edições. Depois dela vieram Poemas possíveis, A bagagem do viajante, O ano de 1993, Levantado do chão (obra que marca o início do estilo saramaguiano de contar história – com parágrafos longuíssimos, pontuação escassa, detalhismo e criatividade em abundância), Que farei com este livro?, Viagem a Portugal, Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis (o “Pessoa” que Saramago demorou a descobrir), A jangada de pedra (que surgiu após uma conversa despropositada com a jornalista brasileira Cremilda Medina), A segunda vida de Francisco de Assis (sobre o seu irmão que morreu aos dois anos de idade com broncopneumonia), História do Cerco de Lisboa, O evangelho segundo Jesus Cristo (polêmica obra que fez o governo português e igreja católica refutarem a posição do autor. Após este período Saramago se “auto exila” na ilha de Lanzarote), Ensaio sobre a cegueira (livro que o próprio autor pensou não ser capaz de sobreviver), Todos os nomes, A caverna, O homem duplicado, Ensaio sobre a lucidez, As intermitências da morte, A viagem do elefante, Caim (último romance do autor), Cadernos de Lanzarote (com cinco publicações), O Caderno (publicação dos textos disponíveis no blog do autor), para citar apenas alguns. A lista de livros só não é maior que o legado por ele deixado.
Por fim (e eu havia avisado que seria pouco o espaço), um dos maiores autores de todos os tempos, é oriundo de uma família analfabeta, em que o único curso que fez foi o de cerrilheiro mecânico e que nem Saramago deveria se chamar. O erro, do funcionário que o registrara, foi um dos tantos que o autor aprendeu a enfrentar. Assim como aprendeu sobre a desigualdade social, o preconceito, a violência e a pobreza. Assim como aprendeu sobre os cegos que mesmo vendo, não veem. Destes, Saramago já nos avisou, da maneira mais original possível. De uma forma que só um grande homem, mesmo com olhar pensativo e cansado, consegue.

Boa leitura e até a próxima semana!

De repente, nas profundezas do bosque



Ler histórias infantis sempre nos faz refletir um pouco mais sobre a maneira como conduzimos nossas atividades, seja no trabalho ou em casa, com a família. Nos faz parar para pensar sobre o que elencamos como vital em nosso cotidiano e, por estas características, se tornam histórias encantadoras.
O livro (infantil) desta semana, em primeiro lugar, me despertou três perguntinhas, são elas: quem nunca quis fugir? Sair pela porta da frente e nunca mais voltar. Deixar os problemas financeiros de lado; a conversa inacabada de outro e seguir, sem rumo, pensando apenas no próximo caminho? Quantas vezes nos deixamos abater por opiniões de terceiros e passamos a ser influenciados por pessoas que se julgam melhores e superiores? E, por fim, quantas vezes desejamos voltar a ser crianças para deixar de lado os compromissos, obrigações, negociatas e decisões?
O mundo das crianças, referenciado por muitos adultos como algo quase utópico, revela um universo onde só coisas boas acontecem. No entanto, como contentar-se não é um verbo muito em uso pelo ser humano, quando crianças desejamos logo sermos adultos para, então, fazermos nossas próprias escolhas, decidirmos a roupa e o brinquedo que queremos comprar, escolhermos o canal de TV, sem ninguém reclamar, etcétera. No entanto, apesar desta divergência de vontades e anseios, algumas pessoas (adultas e crianças) parecem sempre conter um segredo que lhes fazem ser mais feliz. Segredo como o de Maia e Mati, duas crianças de um pequeno vilarejo criado por Amós Oz.
O pequeno vilarejo onde vivem passou, há algum tempo, por uma espécie de maldição. Maia e Mati só ouviram falar deste período (onde existiam animais de todas as espécies, desde aves, répteis, peixes) e, aos poucos, vão entendendo que segredo é esse. Mas, como cita o autor, “acontecem aqueles momentos em que todos nós sem exceção, nos assustamos e ficamos apavorados, às vezes ficamos cansados, ou com fome; momentos em que nos empenhamos muito para que fique tudo bem, não muito quente nem frio” e, nesses momentos, nos igualamos a qualquer outra espécie, nos igualamos a qualquer coisa, indiferente do que fazemos, da nossa idade ou da nossa condição social. Pois “todos nós, sem exceção, tentamos a maior parte do tempo nos preservar e nos guardar de tudo o que corta, morde e fura”. Ou seja, todos nós temos apenas um interesse: se preservar.
Porém, esta é só uma história infantil e você, provavelmente, esteja abarrotado de trabalho, sem tempo para este tipo de conversa.

Boa leitura e até a próxima semana!

8.12.2010

Chapatis e dosas


Na semana passada trazíamos à tona o livro “O que é etnocentrismo”, de Everardo Rocha, e com ele a definição do que esta terminologia significa nas atividades que desenvolvemos cotidianamente. Sabendo, então, que ser etnocêntrico é assumir uma visão do mundo “onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos e nossas definições do que é existência”, podemos imaginar (ou entender) o quão é difícil para alguns aceitarem a existência de culturas e modos de vida diferentes; e também, como é difícil viver na diferença.
É com olhos na harmonia entre estes dois extremos que, nesta edição do Folha do Alto Irani, apresentamos o livro “Chapatis e dosas - meus dias na Índia”, de Stefânia Forner (2006). A obra, da autora chapecoense, não trata sobre conceituações do que é etnocentrismo, mas aborda a dificuldade em conviver com uma cultura tão diferente (pelo menos aos nossos olhos), como a indiana.
O livro é, em suma, um diário. Um diário da farmacêutica que foi à Índia com a intenção de estudar e desenvolver projetos na área de HIV/Aids com crianças e adolescentes sem teto ou que vivem na rua. No entanto, suas atividades foram além destas intenções e como resultado temos a obra em questão.
Embora a Índia possua uma próspera indústria farmacêutica e seja a maior produtora dos medicamentos genéricos para o tratamento de HIV/Aids vendidos no mundo, a terapia antirretroviral não é fornecida gratuitamente a todos os cidadãos diagnosticados com o vírus. Nos grupos estudados pela autora/pesquisadora (36 meninos de 12 a 19 anos e 30 meninas de nove a 18 anos), a maioria tem pouco ou nenhum conhecimento sobre uma doença quer pode ser fatal, se não for tratada adequadamente. E, num país com cerca de dois milhões de infectados esta não-informação é vital para a proliferação do vírus.
Tendo como ponto de partida estes números, podemos conhecer uma “outra” Índia que não aquela das iguarias e especiarias. Conhecemos uma realidade de escravidão, pobreza, prostituição, tráfico de drogas e de órgãos. Um país em que poderemos, como cita a própria autora, odiar e amar no mesmo instante, mas que devemos, sobretudo, respeitar. Um respeito que tenha, em primeiro lugar, noção de humanidade e qualidade de vida.


Boa leitura e até a próxima semana!