3.26.2009

Doidas e Santas


O ser humano tem uma capacidade única de bipolarizar quaisquer que seja a situação em destaque. Existe o certo e o errado, o bom e o mau, o com vergonha e sem vergonha, a verdade e a mentira, o amor e o ódio. Temos uma dificuldade imensa em aceitar e reconhecer o meio termo. Ou é um ou outro. E, nossa, como isso é difícil!
Difícil, porque tem momentos que somos meio sem vergonhas, que não fazemos só o certo e nem por isso erramos, que não amamos, mas também não odiamos; tem momentos que sequer sabemos o que somos e ainda assim precisamos ter um posicionamento. Chega de sim ou não. Vamos, agora, apelar para o talvez!
Talvez você queira um jantar à luz de velas, mas depois vá amar uma noite pervertida; quem sabe não queira decidir, pelo menos por uma noite, onde será a esticadinha; talvez você seja uma doida varrida ou uma santa, talvez prefira bossa nova ao rock n’ roll, talvez, talvez, talvez....
Tantos talvez por puro cansaço ou porque, simplesmente, ninguém decide tudo sempre. Ninguém é sempre o mesmo. Todas as santas um dia ficam doidas (a parte, óbvio, a Nossa Senhora) e todas as doidas são um pouco santas (pelo menos na igreja). Essa talvez seja a variável mais inconstante tanto para eles, quanto para elas. Da doidice à santidade existe um longo caminho. É sobre essa distância que Martha Medeiros, mais uma vez brilhantemente, nos fala em “Doidas e Santas”. A coletânia de crônicas publicadas de 2005 a 2008 é de fazer rir, pensar, pensar e aff, ver que, realmente, muitas coisas passam pelo nosso dia-a-dia e nem percebemos.
“Não acredito que haja uma única mulher no mundo que seja santa”, escandaliza a autora. ”Marmanjos” aborrecidos com a afirmação que revejam seus conceitos, mas é verdade. Santa só mesmo por cansaço ou naqueles dias que é melhor baixar a cabeça, calar e fazer de conta que tudo está nos conformes. De resto, somos todas extravagantes, insensatas, por vezes imprudente, entusiasmadas demais e, claro, apaixonadas ao extremo. Com nós (mulheres) tudo é exagero, é vital e imprescindível. Tudo! Por isso, Martha Medeiros não exagera em nada quando diz que “nascemos com um dispositivo interno que nos informa desde cedo que, sem amor, a vida não vale a pena ser vivida, e dá-lhe usar o poder de sedução para encontrar ‘the big one’, aquele que será inteligente, másculo, se importará com nossos sentimentos e não nos deixará na mão jamais. Toda mulher é doida. Impossível não ser”. Você ainda tem dúvida? Acha mesmo que sua namorada não faz parte desse time de loucos? Esquece! Ela disfarça bem... No máximo, o que pode acontecer é que algumas guardaram “a loucura em uma gaveta e não lembram mais”. Daí, só começando tudo de novo e experimentando novas loucuras e doidices. Assim a vida vale a pena!


Boa Leitura!

O enterro do diabo


A maioria das casas que entramos tem o chamado “quartinho da bagunça”. Ali são depositados utensílios em desuso, caixas vazias e poeira, muita poeira. Olhando por essa ótica o quartinho parece, então, descartável se for feita uma bela faxina, certo? Impossível!
O “quartinho da bagunça” é tão importante quanto a própria cozinha. Além de caixas vazias, poeiras e objetos que não se usam mais, têm muita lembrança. Para os supersticiosos, então, melhor reservar um espaço um pouco maior para tanta coisa que precisa ser guardada.
Como em quase tudo nessa vida, isso não acontece com todas as pessoas. Uns simplesmente odeiam qualquer coisa com mais de um ano; outros não têm espaço, e há aqueles que escolhem um desses ambientes para alojar simplesmente segredos. Segredos que apenas duas ou três pessoas compactuam; desses que podem mudar o curso de uma vida e, se revelados, podem causar um estrago tal como um “aluvião alvoroçado e revolto”.
O segredo tem várias “faces”. Ele une pessoas (as que compactuam), pode separar outras (que fiquem de fora das revelações) e pode causar um imenso desconforto em “terceiros”.
Às vezes guardamos segredos de outros por décadas e nem nos atrevemos a tocar no assunto. Outras vezes não “aguentamos” e daí vira fofoca. No entanto, existem segredos mais graves. Aqueles que escondemos de nós mesmos; que fingimos não saber e que nos deixam perplexos quando revelado. E desses, minha gente, desses têm um monte.
Não são poucas as pessoas que fingem não saber determinado assunto para ficar “de boa”, relax, sem incômodo. Isso acontece na política, igreja, vida a dois, enfim, em, praticamente, todas as relações humanas. Afinal, nem tudo pode (deve) ser exposto de tal forma que não contenhamos segredo algum. Guardar segredo, além de ser uma maneira de preservação e cuidado, é uma forma de manter certas coisas que poderiam ser perdidas se informações fossem reveladas.
Toda essa história de quarto da bagunça, segredos e afins para falar de um enterro. Não um simples sepultamento, mas sim o “Enterro do Diabo”, um livro de Gabriel García Márquez. A história, narrada em Macondo (aquela mesma de “Cem Anos de Solidão”), retrata o momento em que o povoado parou para ver o cortejo passar. O dia era uma quarta-feira. Calor, poeira e vento. Por detrás da janela à cidade, devastada pela companhia bananeira, à revelia de rajadas de ventos, que ainda carregava as marcas da guerra. Dessas marcas ficaram as lembranças da noite em que todos precisavam da ajuda dele, o doutor, que se negou. A partir daí, mais segredos surgiram na antiga Macondo e então nada mais foi como antes.
Também no livro, segredos são inquietantes e provocadores. Levam à pensamentos escusos e interpessoais. Como diz o autor, “Enquanto alguma coisa remover-se sabe que o tempo passou. Antes não. Antes que alguma coisa se mova é o tempo eterno, o suor, a camisa, grudada na pele e o morto insubornável e gelado por detrás de sua língua mordida”. Sem movimento, não há vida, nem cor, nem sabor. Sem movimento, o ar fica sereno e o tempo de luto. O movimento é ação. O olhar. O beijo. A carícia. É a fala. O segredo e o calar, no momento certo. Isso é a vida. O resto é morte e sepulcro. Estáticos e sem bagunça. Nem no quarto nem na mente.


Boa Leitura!

3.18.2009

Diário de um louco


O hábito de escrever em diários é tão antigo quanto a própria história da escrita (ou, quase isso). Neles uns são mais detalhistas, outros mais enfadonhos. Não importa. O essencial é escrever. Nesse grupo de amantes, há também os fissurados por cartas. Muitas vezes, escrevem-nas e não entregam ao destinatário, mas continuam a produzi-las por puro prazer. Há ainda quem não entende “patavinas” o porquê desse gosto em juntas letras, formar palavras e produzir um sentido. No entanto, gostando ou não, todos, com raras exceções, já fizeram algo do tipo.
Os diários pertencem a algo mais particular do sujeito, que diz respeito ao relato de coisas feitas, pensadas e imaginadas. Também ali são relatados pensamentos censurados e tímidos, que cabem apenas a quem escreveu. Talvez por isso, quando uma pessoa lê o diário de outra, a possibilidade de compreender o que está proposto se dá na mesma proporção que a de não entender nada e fazer até mesmo um julgamento errôneo.
Apresentada essa forma de comunicação milenar, falamos agora de literatura e demência. Imaginem esses elementos aliados em um mesmo diário, na mesma obra, mesma história, na mesma pessoa e você terá “Diário de um louco”, de Gogol.
A dobradinha de resenhas do mesmo autor se deu pela curiosidade e incerteza sobre o que é lúcido ou não nesse mundo de loucos. Ao iniciar a leitura, sinto uma incerteza de que aquilo faz parte de um registro insano ou se é apenas um diário. As falas e narrativas não parecem ser distintas ou estremadas daquilo que cotidianamente vemos. São expressões e confissões de uma pessoa qualquer com seus sonhos, desejos, ambições e, não podia ser diferente, ilusões.
Ao passo que conhecemos o protagonista da história, temos contato com a realidade e o pensamento de uma pessoa como nós: que não entende certas hierarquias e maneiras diplomáticas de se chegar aonde quer, mas que simplesmente “quer”. No entanto, “ele” desperta esse querer de forma imaginativa e as traz para a realidade. Fazendo isso, assusta; se apodera de personalidades que não lhe dizem respeito; trava duelos com aqueles que não acreditam na sensatez de sua insanidade e vive. Tal como nós: vive num mundo de ilusões, onde fingimos sermos pessoas que sequer conhecemos, desejamos aquilo que não temos, fazemos de conta que os outros, esses sim, são loucos, mas não nós. Pensando bem, talvez não sejam tantas as diferenças entre nós e pessoas como ele. Pelo menos não em diários!
Fica o convite para aqueles que quiserem mais que apenas viver e desejarem ver escancarada a vida de um louco. Certamente uma insanidade diferente da nossa, diferente da nossa rotina. Nós, os lúcidos, que pouco sabemos de insanidade e extravagâncias teremos, possivelmente, que fazer um exercício para entender esse relato demente e fugaz. Mas, como disse o autor: “chega. Basta. Eu me calo!”.

Boa Leitura!

O nariz


Uns tem alergia à poeira, outros à primavera e há ainda quem tenha sinusite. A todos esses o maior alvo é o nariz. Aqueles dois pontinhos nos desenhos de criança, passam então de passivos a ativos e nos fazem querer, em determinados momentos, arrancá-los. Há ainda os momentos em que parecem servir apenas para alojar uma espinha, cravos ou segurar óculos.
Por isso mesmo, certamente muitos de vocês já devem ter pensado em como seríamos se, simplesmente, não tivéssemos nada “entre as bochechas”; se no lugar do nariz tivesse somente uma lisa pele, sem buraquinhos, nem alojamento de cravos melindrosos. Provavelmente não seja tão fácil quanto parece. Afinal, pensar assim, seria imaginar outro aspecto da natureza humana, outra constituição física e, até mesmo, outro aparelho respiratório, já que este inicia nas fossas nasais.
Deixemos essa parte mais técnica de lado e nos concentremos nas que causam (de imediato) maior impacto: o aspecto físico. Todos ou pelo menos a maioria hão de concordar que, por hábito, o nariz constitui parte importante na beleza de cada ser humano. Uns são mais largos, outros finos, achatados ou volumosos, mas cada um possui a sua particularidade que faz de um indivíduo diferente de outro (claro, aliado a outras características também).
Tendo isso em mente, imaginemos, então, um cidadão que certo dia acorda sem o nariz. Imaginemos, para maior divagação, uma figura púbica “na pele” desse cidadão (ou imagine a você mesmo nessa situação). Essa pessoa, então, acorda, lava o rosto e lembra que no dia anterior havia lhe saído uma espinha terrível bem na ponta do nariz. Vai em direção ao espelho para aniquilá-la e, de repente, nada há: nem espinha, nem nariz.
Lógico que num primeiro momento você imaginaria que tudo isso faz parte de um terrível pesadelo, desses que é preciso um beliscão no próprio corpo para ver se é verdade mesmo. Mais absurdo ainda é quando percebe ser verdade sim! O seu nariz, que em nada tinha de especial, sumiu. Nem marcas e nem sinal. Você respira naturalmente, mas eles, os buraquinhos, a espinha que havia se alojado, nada, nem as sardas estão ali. No lugar, uma pele lisa.
Naturalmente, você, ou quem quer que seja que estivesse nesse lugar, ficaria apavorado e totalmente desconfiado em saber quem seria capaz de roubar-lhe objeto de tamanha importância. Afinal, que outra explicação teria um sumiço desses que não um furto.
Tudo isso pode parecer meio ilógico e sem nexo. E, para surpresa de muitos, também assim sugere o autor do livro que orientou esse texto. De acordo com Gogol, autor de “O Nariz”, publicado no ano de 1836, que narra o desaparecimento de um nariz, a obra não passa de uma farsa absurda e inquietante, com uma junção de incoerências. Afinal, aonde já se viu uma pessoa perder o seu nariz! No entanto, lembra Gogol, “o que e onde não existem incoerências”, a vida não é estática, muito menos previsível. Talvez por isso, o autor também sugira que aventuras como esta, mesmo raras, acontecem. Ou seja, é possível imaginar que possa existir a possibilidade de perdermos mais do que apenas o nariz. Perdemos muito mais que isso, a todos os dias e, às vezes, nem percebemos.

Boa Leitura!

O médico e o monstro

Há dias que gostaríamos de nos dividir em dois. E não são poucos os momentos que isso acontece. Tanta coisa para fazer, que ter um “clone” iria auxiliar no desempenho das “coisas chatas da vida”. Afinal, vamos combinar, a proporção de atividades assumidas (e acumuladas) é tamanha que acabamos por deixar as que nos dão prazer de lado. Junto com esses “prazeres” perdemos o nosso “outro”, sensível, libertário, cruel e insensato. O “outro” que foge das nossas atitudes “politicamente corretas”.
É pensando nesse “eu” guardado a sete chaves que se discute a dualidade do homem. Dualidade que, por sua vez, diz respeito ao bem e mal que todos carregam (uns com mais bem do que mal e outros mais mal que bem). Ou seja, o bem e o mal que não desenvolvemos por reprimir e enclausurar devido alguma sanção incorporada. Lembrou de alguma coisa? Um clássico, talvez?
Se a resposta for sim, os leitores com certeza já leram “O médico e o monstro”, de Robert Louis Stevenson, escrito em 1886. O livro, além de um belo caso policial, traduz interfaces do pensamento humano e sua infinita disputa entre cosias “boas” e “ruins”. Dessas que, como cita o autor, sufocam prazeres e restringem possibilidades. Não que isso seja de um todo mal, afinal precisamos de algum ordenamento para viver em sociedade. O que se discute são as possibilidades de felicidades não convencionais deixadas de lado.
“Acabei por sufocar meus prazeres e, depois de anos de reflexão, ao olhar ao meu redor e avaliar meu progresso e minha posição no mundo, percebi-me já comprometido com uma profunda duplicidade de vida: o bem e o mal”, diz o autor em determinado momento da narrativa. No entanto, como já dizia Nietzsche (1887), o juízo “bom” provém daqueles que demandam da “bondade” (o que também ocorre com a maldade), quer dizer, foram os próprios bons, “os homens distintos, os poderosos, os superiores, que julgaram ‘boas’ as suas ações”. Assim, no momento que se distingue o bom do mal é preciso levar em consideração a quem isso é atribuído e como é exercido.
A busca do médico (e monstro) era, então, localizar uma identidade diferente (o outro) e encontrar um alívio para tudo o que era insuportável na vida assumida (status e posição social, vida acadêmica, etc.). Nessa outra identidade, o injusto tomaria seu próprio rumo, livre das aspirações e remorsos de gênero repressor, e, assim, “poderia andar com firmeza e segurança em seu caminho ascendente, fazendo as coisas boas nas quais encontra seu prazer e não mais se expondo à desgraça e à penitência pelas mãos desse estranho mal”.
Libertário ou não, o cidadão ora médico, ora monstro nos faz pensar nessas cosias que não fazemos e que sequer pensamos se gostaríamos de fazer. Segundo a introdução do livro, o mesmo foi escrito a partir de um sonho do autor que, ao acordar, lembrou de uma “boa história de terror”. Não exagerou em nada em sua descrição. E conseguiu ainda nos levar a pensar o que faríamos se tivéssemos o reflexo do “outro” no espelho? Sentiríamos medo também? Ou o nosso “eu” não se difere muito do que somos hoje?


Boa Leitura!